“DA QUASE SEGREGAÇÃO SOCIAL LEGAL”, por Carlos Henrique Musashi

 



Da quase segregação social legal

Por 

Carlos Henrique Musashi

                                  

Pouca gente sabe, mas nos EUA (entre 1877 e 1964) existiam as Leis Jim Craw[1], um maldito compêndio de decretos estaduais/locais que tornaram a segregação racial algo normal aos olhos da lei nos estados do Sul deste país que alguns têm como referência, de um exemplo a ser seguindo por outras nações. Diante tal legislação os povos afro-americanos não poderiam votar, estudar, andar de ônibus somente no “fundão” enquanto os brancos iam na frente e se faltasse lugar, em tal transporte público, os negros teriam que ceder seu lugar, bem como descer da calçada, se afastar, para um branquinho passar e, de preferência, sem olhar nos olhos e nem cumprimentar, pois se tal saudação fosse entendida como assédio esta situação poderia cominar em morte por linchamento e as fotos, de tal atrocidade, virariam postais vendidos por alguns trocados para o deleite macabro das famílias caucasianas e seus repetitivos “cidadãos de bem” impunes e felizes.

Nos EUA, esta legislação afetava a vida dos negros em praticamente todos os aspectos da vida cotidiana: nas escolas, nos parques, nas bibliotecas, nos bebedouros separados assim como em banheiros, ônibus, trens, restaurantes e em todos os lugares públicos onde eram exibidas placas em letras garrafais a alertar que aquele lugar era “somente para brancos” ou “pessoas de cor” – era separados da sociedade como se fossem cães sarnentos, mas ai do negro que desrespeitasse tais avisos – uma bobagem poderia lhes render um tempo na prisão. Em suma, a “desgraça de um negro era a diversão de brancos”, principalmente entre os sulistas americanos, onde todo tratamento degradante e desumano, dispensada a esta raça, deveria ser aceita de maneira silente pelos mesmos.


Tal arrogante postura partiu da premissa que os “brancos eram superiores as outras raças”, principalmente aos negros que eram considerados “cidadãos de terceira classe”, sendo os amarelos (orientais), os pardos (indígenas e outros incluindo os judeus) “cidadãos de segunda classe” e os brancos, altos e de olhos claros, eram logicamente dos de “primeira classe”. Lembrando que tal premissa também foi abraçada pelos nazistas com aquela velha história de “raça superior”, “supremacismo branco”, onde tentaram criar uma “raça pura” baseados em ideologias higienistas, dados científicos distorcidos, que levou ao genocídio e tudo isso baseado apenas numa característica de um fenótipo claro da pele – quanta idiotice! Até porque a humanidade surgiu do mesmo tronco a duzentos mil anos, pois primeiros seres humanos modernos surgiam na África e começavam a se espalhar por outros continentes”[2] e, quanto a questão da cor da pele e outras as diferenças físicas que a nossa espécie sofreu foram adaptações promovidas pela “mãe natureza”, já que nossa espécie se espalhou por todo planeta e em cada lugar com diferentes condições ambientais (lugares frios, secos, calor, muito sol, ausência de luz) que fizeram com que o corpo humano fosse se adaptando, promovendo mudanças meramente físicas ao longo de milhares de anos – isso se chama EVOLUÇÃO, mas esta teoria não entra na cabeça de supremacistas e de boa parte dos religiosos criacionistas, dando espaço para algumas religiões pregarem que todo sofrimento a uma determinada raça venha ser justificado como consequência de um “castigo divino”, como por exemplo no trecho de um dos textos da igreja mórmon, escrito no período das Leis Jin Craw, para explicar a existência dos negros:

 

Perguntei a Joseph F. Smith por que foi que o filho de Cã, Canaã, fora amaldiçoado ao invés de Cã para expor a pessoa do seu pai. Ele disse que o Profeta Joseph é citado como havendo dito que o pecado de Cã consistiu em tentar castrar seu pai, Noé, e matar seus irmãos, Sem e Jafé, para que ele pudesse se tornar o cabeça das nações da terra. Cã havia se casado com uma filha de Caim, e através dele a maldição foi propagada através do Dilúvio. A semente dessa união é os egípcios, que não são negros, mas após a maldição de Cã, seus descendentes foram inteiramente de negros. Daí a diferença entre as raças que agora habitam a África. (Diário de Abraham H. Cannon, vol. 17: 1892)[3]

 

O Brasil não chegou a ter uma Lei Jim Craw, mas ainda sofremos o “mau dos colonizados”, de superestimar as características dos nossos invasores europeus. Sendo assim a sociedade continua racista, elitista, embora, contraditoriamente, sejamos um país de uma maioria pobre ou classe média baixa, de diversidade étnico-racial, uma mistura de cores lindas que estampa a nossa população, onde 47,5% dela “se declara” branca (mesmo quem é), pois ainda costumamos endeusar as peles e os olhos claros bem como as estaturas de “canelas” mais cumpridas. E o tratamento continua desigual para as camadas sociais menos favorecidas, mas independente de raça. No entanto, a cor da pele, na pobreza, apenas influencia no tratamento, ao entrar em uma loja, por exemplo, e ser observado com suspeita ou com desprezo, ou na hora de candidatar-se a uma vaga, de como seu currículo irá ser apreciado, onde a “beleza” do candidato, mediante o que se considera socialmente belo, influenciará na escolha.

Na nossa atual conjuntura social o racismo continua de forma velada, salvo as tendências da extrema-direita, onde ela é escrachada. Mas até nas inteirações sociais familiares em conversas, onde tratamos apenas de amenidades do cotidiano, percebemos as “tias velhas” exaltando lombrosianamente[4] uma característica ou outra de um parente que tenha, pelo menos, umas das características de um ser “humanos superior”, nem que seja apenas pela altura ou a cor dos olhos de tal ente querido, mas se a pessoa tiver todas as tidas “boas qualidades” (cabelo loiro, pele e olhos claros, altura em conformidade com o que é considerado socialmente belo) acaba se tornando a “pessoa mais bonita da família”. No entanto, se o indivíduo não tiver nenhuma destas “qualidades” irão possivelmente rotulá-lo pelas características que o racista velado considera desvantagem: “neguim”, “baixinho”, “gordinho(a)” entre outras referências aos estereótipos que ouviremos das bocas destes apegados a tais conceitos de beleza, mesmo que em meio a um sorriso a nos dizer que é apenas um “apelido carinhoso”, mesmo que a criatura que chama alguém de “baixinho” seja do tamanho de um Oompa-Loompa[5], mas se sente no direito de rotular porque pariu (ou gerou) um galalau de 1,80 m de altura. E se tal pessoa auferir uma condição financeira melhor esse tratamento diferenciado será explícito, mas se aquele for desprovido das características “esperadas” para ser considerado, por exemplo, “digno” de se relacionar com algum destes terá que ouvir muitos comentários idiotas. No entanto, mesmo que alguém não tenha tais qualidades caucasianas poderá ficar isento de tal tratamento pejorativo se, pelo menos, aferir uma boa condição social/financeira, se vier de “boa família” (gente que tem grana) ou estiver associado a alguém que um suprematista discreto tema ofender de forma mesmo que indireta; assim irão evitar, diante deste, fazer certos comentários maldosos e acintosos, mas se for alguém “sem relevância social” a pessoa se transforma em eventual instrumento de chacota em curto ou em médio prazo, pois, afinal, o que segura a língua de um suprematista são as relevâncias sociais independente de cor.

Não de forma tão brutal, mas nos moldes velados e semelhantes a da “lei de secreção racial legal americana”, o “desfavorecido social”, em tal ambiente supremacista, perceberá que não está em pé de igualdade com os demais, pois todo comentário degradante dirigido a ele parecerá justo. E se o ofendido responder a altura irá sentir o peso de sua “insignificância” diante dos tais, assim como, por analogia, o que “se podia fazer com o negro não se podia fazer com o branco”. Logicamente não irão linchar fisicamente tal pessoa, não irão enfocá-lo ou chutá-lo até a morte, mas aqui o linchamento é outro – é o discreto “lixamento moral”[6] se por acaso uma tal pessoa desprovida, não exercer o direito de ficar calado e “aceitar as coisas como elas são”, baixar a cabeça e fingir que “está tudo bem para”, pelo menos, conviver em paz diante de um grupo com caraterísticas supremacistas, pois , afinal a o assediado foi o único a se irritar com tais “brincadeiras”, pois o supremacista, o fascista, o racista, não percebem suas atitudes como ofensa, mas como um “direito legítimo” de dizerem o que “pensam”, pois acreditam que seus posicionamentos são superiores e irrepreensíveis, até porque tais asininos colocam a sua diversão acima dos sentimentos de outrem como acima dos seus respectivos civis de quem eles aborrecem, mas isso é axiomático para quem coloca a vaidade acima do bom senso, mas, às vezes, sabem se comportar diante daquelas pessoas que consideram “importantes”, ou seja, são uns bostas.

Em meados da década de noventa, século passado, a Wolens – marca de vestuários e perfumes, lançou uma campanha publicitária com o slogan “o mundo trata melhor quem se veste bem”. Esta frase, famosa dos anos noventa, representa uma verdade, onde nos diz claramente a importância, a extrema relevância, de como nos vestimos, ou seja, da nossa “aparência exterior”, ou seja, o que somos por dentro no tocante aos nossos valores, nosso caráter… parece ser irrelevante desde que sejamos bem afeiçoados, que pareçamos com o que é socialmente considerado atraente, mesmo que sem “um puto no bolso”, mas se vestir bem, exibir totens sociais custa caro.

Hoje o que pesa é a condição social do indivíduo, ou pelo menos a aparência dela. Como já disse em outro texto: na sociedade moderna sempre vai ser assim; valemos apenas pelo que temos em nossos bolsos, somos tratados pelo que vestimos, onde o caráter é proporcional a algo novo de duas ou quatro rodas.   

Como sabemos não existe uma “lei de segregação social legal” de maneira expressa, mas ela é implementada discretamente em nosso “jeito de ser” ao tempo que negamos tal fato, pois ainda nos espelharmos em velhos costumes, em costumes ancestrais baseados nos nossos colonizadores a nos dizer que o ser humano pode ser “tarifado” pela sua cor, pelo seu gênero, pelas suas crenças ou pela sua condição social como indivíduos de primeira, segundo ou terceira classe ao tempo que, hipocritamente, postamos em nossas redes sociais declarações de “amor a Deus” e “amor ao próximo” com frases bíblicas e floreadas a nos dizer que somos pessoas desinteressadas no que é do outro. Então, sendo assim, sejam todos bem-vindos ao mundo dos tolos e superficiais!

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[1] As leis de Jim Crow (Jim Crow Laws) foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos promulgadas no final do século XIX e início do século XX pelas legislaturas estaduais dominadas pelos Democratas após o período da Reconstrução. As leis foram aplicadas entre 1877 e 1964. As referidas leis exigiam instalações separadas para brancos e negros em todos os locais públicos nos estados que faziam parte dos antigos Estados Confederados da América e em outros estados americanos.

[2] Visto em: SUPERINTERESSANTE. A ciência contra o racismo. Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/ciencia-contra-racismo/. Acesso em: 10 set. 2020.

 [3] Visto em: VOZES MÓRMONS. Joseph Smith: De Onde Negros?. Disponível em: https://vozesmormons.org/2015/10/09/joseph-smith-de-onde-negros/. Acesso em: 10 set. 2020.

[4] Referência a Cesare Lombroso – um higienista, professor universitário e criminologista italiano (1835 – 1909) que “tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia, ou a relação entre características físicas e mentais”. Suas teorias racistas e preconceituosas foram aproveitadas pelos nazistas para classificar pessoas por características físicas poderiam determinar até o caráter de um indivíduo. Visto em: CEREBROMENTE. Cesare Lombroso: uma Breve Biografia. Disponível em: http://www.cerebromente.org.br/n01/frenolog/lombroso_port.htm. Acesso em: 22 abr. 2020.

 [5] Alusão a um tipo de anões existentes obra de ficção de Roald Dahl "Charlie and the Chocolate Factory" (1964) e também nas adaptações A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971) e A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005)

[6] Ato de maltratar publicamente com palavras por um grupo de pessoas que desrespeitam a intimidade, personalidade, sexualidade, moral, honra de alguém (independente do tom de voz empregado ou meio empregado), onde a vítima é alvo de insinuações maldosas, afirmações desarrazoadas, calúnias e outras forma de constrangimento, tratamento degradante, diante de outros que participam e/ou concordam mesmo que pelo silêncio com tal ofensa moral. Linchamento moral é crime que cabe reparação diante da lei e os autores podem responder cível e criminalmente. (Dos crimes contra a honra Art.38-40 do CP).


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