O Ting e a arte de fazer os outros se passarem por mentirosos, Por Carlos Henrique Musashi

 

O Ting  e a "arte" de fazer os outros se passarem por mentirosos

Por Carlos Henrique Musashi, Aracati, 29 de setembro de 2021.

 

Ideograma TING

Acredito que pouca gente saiba que existem diferenças entre o ato de OUVIR e de ESCUTAR, que ouvir refere-se meramente a nossa capacidade auditiva, “de captar o som provocado pelas vibrações das moléculas do ar”. E escutar é dar atenção àquilo que é captado por nossos ouvidos, além disso, escutar é compreender, processar, internalizar aquilo que está sendo ouvido e não apenas receber o som em nossas orelhas separadas pelo cérebro que também faz parte deste processo.

Os chineses vão mais longe sobre esta concepção. Filosoficamente eles consideram que ouvir “exigi a capacidade e a retidão virtuosa”. E a palavra, escrita em mandarim, atribuída a esta ação é representada pelo ideograma “Ting”, sendo esta composta por vários signos/ideogramas.

O “Ting” é composto pelo sinal () que aqui não se trata do número dez (em mandarim) e nem do sinal matemático, mas ironicamente somado ao ideograma “olho” () expressa a ideia de “retidão do que se vê”, aquilo que o interlocutor percebe no diálogo, de “escutar também os olhos” no ato de perceber as expressões não verbais, os sentimentos às vezes contraditórias  diante das palavras ditas.

No referido ideograma temos também o signo do “ouvido” () e o da “mente” (), dando a entender que “ouvir não significa apenas captar o som recebido pelos ouvidos”, mas ser capaz de captar mentalmente “selecionando o que é bom, correto e necessário”, porque escutar também se trata de uma ação. E temos também o ideograma do “coração” () que nos sugere não ouvir de forma leviana, mas colocarmos nossos sentimentos de forma mais honrada, leal, nesta ação.

E vamos combinar que “não saber escutar” é um defeito cada vez mais comum entre nós, em meio aos aperreios do nosso estressante cotidiano; principalmente no que se refere a não querer nem ouvir aquelas informações que “desmontem” as nossas frágeis convicções ou que destrua nossas narrativas, mesmo que trate de uma fofoca maldosa.

E quem já não passou por uma situação, seja esta boba ou grave, gerada por uma “falha de comunicação”? Acredito que nenhum de nós seja inocente ou esteja isento de passar por isso. E não saber escutar tem por condão gerar mal-entendidos que, por sua vez, tem o poder criar situações no mínimo engaçadas ou bem constrangedoras – seja para aquele que replique determinada história ou para o personagem principal de uma “narrativa torta”.

Daí a necessidade de sermos mias adeptos do “ting”; e caso tenhamos dúvidas sobre aquilo que ouvimos seja melhor não transmitir tal narrativa, quando não se tem a “segurança” e nem as “informações” necessárias, principalmente se tratando de indivíduos que tenha como dever comunicar um determinado fato.

Assim como boa parte de meus leitores, com mais de quarenta anos, já passei por inúmeras situações geradas por histórias mal contadas, seja pelo fato de um individuo não se comunicar corretamente, “arredondando” um fato por pura desatenção ou na tentativa de ser meramente engraçado; ou ainda por aqueles tão friamente “exigentes com gramática normativa” que traduzem mecanicamente uma linguagem regional, uma gíria ou qualquer outro fenômeno linguístico sem levar em consideração o contexto, coisa que muitos "intelectualóides" fazem naturalmente ao ponto de fazer o próprio Saussure[1] se revirar no túmulo.

 

Certa ocasião, no ano de 2010, fui agraciado com a oportunidade de divulgar meu negócio de licores em uma rede de televisão de grande audiência.  O repórter em questão estava interessado em falar do licor de pequi, feito com o fruto da estação da cidade onde residia. Em um entrevista in off, antes de filmar a matéria propriamente dita, o repórter perguntou sobre minha ancestralidade e sobre meus ofícios. Tranquilamente disse que eu era designer gráfico e que tinha uma descendência miscigenada com a oriental – uma descendência distante, mas deixando claro que sou um mestiço, como a maioria dos brasileiros.

A matéria foi feita tranquilamente, sem nenhuma dificuldade, mas, quando fui assistir a matéria pronta, exibida em todo território nacional, na Globo News, pela manhã, a cabeça da matéria dizia que eu era um “desenhista filho de japoneses”.

Sou de uma cidade pequena, do litoral leste do Ceará, com pouco mais de setenta e quatro mil habitantes onde minha família é bastante conhecida e meus pais, outros parentes e conhecidos assistiram a matéria.

Meu pai, sendo um indivíduo brincalhão, passou meses fazendo piada. Já outros, mais próximos, fizeram mau juízo sobre aquilo que “eu tentava parecer” – chegaram a me confrontar. E, tendo sido considerada uma matéria interessante, foi repetida em outras filiais desta rede de televisão e, numa destas filiais, ainda trocaram meu nome – me rebatizaram de “Rodrigo”, que é até um nome bonito, mas este não é meu nome.

Embora tivesse ficado feliz com a “propaganda” do meu produto, gerada pelos meus poucos minutos de fama, mas aquilo pegou mal. Encheram-me o saco durante algum tempo.

Em outra situação cotidiana, voltando de Fortaleza rumo a Aracati, vim conversando amenidades com um taxista conterrâneo, que perguntou sobre a origem de um de meus sobrenomes (Musashi) – tranquilamente respondi, sem me alongar ou dizer-me de outro país, pois se tratava apenas de um substantivo próprio, até porque era óbvio e a pessoa conhecia outros membros de minha família.

Nunca neguei minhas origens e tenho orgulho de dizer que sou filho do Aracati – esta maravilhosa “Terra dos Bons Ventos”, amo ser cearense e, logicamente nordestino – mas sem ser bairrista. No entanto, tal motorista, pra minha surpresa, comentou com outros dois parentes meus que “eu havia dito que era chinês” – e, claro, vieram mais uma vez me confrontar.

Em outra situação, também conversando amenidades, perguntaram sobre minha formação acadêmica. Respondi tranquilamente que era um bacharel em direito recém-formado, mas o que a pessoa inocentemente transmitiu foi que eu havia dito que “eu já era um advogado” – nada ofensivo, tudo bem, agradeço até o pensamento positivo, mas quem me conhece sabe que ainda não pertenço a honrada Ordem dos Advogados do Brasil, mas para uma pessoa maldosa, mais próxima, isso, somado a outros factoides, soa como “mais uma mentira que andei contando” por aí...

O fato de não saber escutar, de não entender, ou não presta atenção, ao que está sendo dito, associado à maldade do interlocutor, é um veneno, uma “fórmula mágica” para criar monstros, de, em conversa, transformar uma minhoca em uma sucuri. Fora o fato conhecido do efeito “bola de neve” de que “quem conta o conto aumenta um ponto”. Até costumo rir de certas situações, mas somando os factoides, exemplificados acima, eu virei “o cara que anda por aí dizendo que é um advogando chinês que filho de japoneses”.

E diante do fenômeno da pós-verdade[2], dependendo da gravidade da situação, explicar não adianta muito, pois fatos verdadeiros e objetivos serão insignificantes diante das crenças pessoais eivadas do senso comum do que já foi absorvido, onde a verdade tem perdido cada vez mais a sua importância nos debates sociais e políticos. Sendo assim, podemos dizer que a maioria dos indivíduos não se influencia pelas argumentações racionais ou fatos concretos. E os discursos vazios ganham mais poder em cada esfera da sociedade, ou seja, vive-se hoje a “desinformação na era da informação”.

É no mínimo chato ser cobrado, ter que “dar satisfação” em meio ao deboche, por aquilo que mentes turvas criaram e outras reproduziram.

Na maioria das vezes são coisas simples, bobas, sendo replicadas, que podem até arrancar boas risadas, mas quando se trata de assuntos mais sérios isso pode trazer prejuízo para o “personagem da história” a ser visto, no mínimo, como um mentiroso – uma pessoa a quem não devemos dar muita credibilidade.

No entanto, sendo algo mais grave, que gere um prejuízo moral (que não foi o meu caso), que afete até a esfera material de um indivíduo ao ponto de, por exemplo, este perder o emprego ou gere uma separação/divórcio por conta da criação de um ambiente de difícil convivência. Quando um factoide gera prejuízo, vale salientar que isto se torna um fato jurídico: a obrigação de indenizar por parte de quem gerou o dano.

Geralmente gostamos de exaltar e cobrar a lealdade como grande virtude a ser guardada. Então seria bom começar a sermos leais começando pelos “nossos ouvidos”, sermos leais em nossas pronúncias ou em nosso silêncio, pois uma coisa é não ser “bom ouvinte”, outra coisa é sair replicando aquilo que de fato não escutou, mesmo que seja apenas com a intenção de sermos “quase engraçados”.

eg

  "E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento..." [ Romanos 12:2]



[1] Ferdinand de Saussure (1857 - 1913) foi um suíço linguista, semiólogo e filósofo. Suas ideias estabeleceram a base para muitos desenvolvimentos significativos em linguística e semiótica no século XX. Ele é amplamente considerado um dos fundadores da linguística do século XX – o Pai da Linguística Moderna.

[2] Que se relaciona ou denota circunstancias nas quais fatos objetivos tem menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais. [Definição do dicionário Oxford]

   


Comentários

Postagens mais visitadas