Ensaio "Navegando Pelas Ilhas do Autismo"
"Navegando Pelas Ilhas do Autismo"
Por Carlos Henrique Musashi, em 18 de fevereiro de 2024.
“Ninguém compreende o outro. Somos, como disse
o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa.
Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão
o que lhe diga uma palavra – sombra disforme no chão do seu entendimento [...] [FERNANDO
PESSOA — “Livro do desassossego”.]
O autismo de nível um de suporte,
muitas vezes erroneamente considerado leve, é uma condição complexa e
desafiadora que envolve diversas sensibilidades e dificuldades nas interações
sociais. As pessoas com essa condição, assim como eu, enfrentam constantes
desregulações, especialmente relacionadas a sensibilidades sensoriais, alimentação
e necessidade de suplementação com vitaminas — situações que às vezes se
apresentam com grande seletividade alimentar ou compulsão alimentar, percebidas
no famoso “efeito sanfona”.
Não em todos, mas a dificuldade
em interpretar expressões faciais, tanto de outras pessoas quanto da própria,
torna a comunicação social um desafio constante. Modular o tom de voz também é
uma tarefa difícil, contribuindo para as complexidades da interação social. O
autismo de nível um de suporte pode levar ao desenvolvimento de estereotipias
como uma forma de lidar com o olhar de julgamento percebido quando se
movimentam, mesmo que esses movimentos sejam essenciais para a rotina diária.
Os meltdowns[1],
episódios de sobrecarga emocional, são comuns, assim como o masking[2],
uma estratégia adotada para disfarçar as estereotipias e evitar o julgamento
alheio. Esse comportamento de mascarar torna-se uma resposta necessária para
enfrentar as dificuldades na comunicação social, impactando negativamente os
relacionamentos.
Os hiperfocos[3] e
interesses restritos, embora possam parecer intrigantes, podem ser prejudiciais
à vida da pessoa autista. Além disso, muitos autistas podem ter uma noção
limitada do perigo, exigindo suporte constante para lidar com situações
cotidianas. É importante destacar que não existe um nível zero de suporte para
o autismo; toda pessoa autista necessita de suporte em diferentes graus.
No meu caso, o meu hiperfoco se
revela na facilidade que tenho em escrever, tanto no que se refere à escrita
criativa, como contos e romances, quanto na produção, por exemplo, de um
projeto para a resolução de um problema complexo. Isso me toma horas de
dedicação, e nem percebo a fome, pois estou empenhado em resolver tal questão —
sou como dizem, “uma máquina de escrever”
com brainstorm constante. Dada uma
tarefa intelectual complexa, certamente encontrarei uma solução mais rápida e
eficaz do que uma pessoa considerada 'normal'. Tem neurotípico que pira! No
entanto, posso me enrolar com coisas muito simples que não esteja ainda
familiarizado.
Outra “ilha” para nós autistas é
a rigidez cognitiva[4],
representada pela resistência à mudança de padrões de pensamento e
comportamento, pode gerar desafios significativos nos relacionamentos. A
tendência à rigidez pode tornar trabalhoso para o autista entender e aceitar
perspectivas diferentes da sua, impactando a empatia no relacionamento, mas
nada que não possa ser conversado.
É lamentável que muitas vezes, a
condição seja minimizada por leigos e capacitistas que, ignorando a natureza
invisível do autismo, o rotulam como “frescura” e, às vezes, “fingimento”.
É fundamental reconhecer a
complexidade dessa condição e oferecer suporte adequado, considerando as
múltiplas facetas e desafios enfrentados pelas pessoas autistas.
No contexto dos relacionamentos
amorosos, os desafios enfrentados por pessoas com autismo de nível um podem ser
particularmente intensos. Os meltdowns e o "masking" desempenham
papéis significativos, frequentemente obscurecendo as verdadeiras emoções e
intenções do indivíduo, o que pode ser interpretado erroneamente pela parceira
como desinteresse ou falta de comprometimento. Essas crises emocionais podem
surgir em momentos inesperados, dificultando a estabilidade emocional e a
comunicação eficaz dentro do relacionamento.
Além disso, os hiperfocos e
interesses restritos podem levar o autista a dedicar uma quantidade
significativa de tempo e energia a áreas específicas de interesse, às vezes
negligenciando as necessidades da parceira ou dificultando a participação em
atividades compartilhadas. Essa tendência pode gerar sentimentos de desconexão
e frustração no relacionamento.
É essencial que as parceiras (ou
parceiros) compreendam as complexidades do autismo de nível um e estejam
dispostos a aprender estratégias de apoio e comunicação que possam fortalecer o
relacionamento. Uma abordagem empática e educada pode ajudar a superar os
desafios e cultivar uma relação amorosa e duradoura, baseada no respeito mútuo
e na compreensão das necessidades individuais.
Muitos de nós descobrimos o
autismo já na maturidade. Geralmente, isso ocorre ao identificarmos essa
condição em alguém próximo, o que nos leva a pesquisar e compreender tal
situação. Acabamos por perceber que compartilhamos características semelhantes,
mas é crucial ter cautela, pois é possível parecer algo sem efetivamente sê-lo.
Por isso, recomenda-se buscar a orientação de pessoas com experiência na área e
especialistas preparados — acreditem, há profissionais que só tem o diploma.
No entanto, para alguns
capacitistas, é mais fácil e interessante quando éramos simplesmente rotulados
como "desinteressados", "esquisitos", "fingidos"
e "falsos". Isso lhes conferia o poder de nos julgar conforme suas
conveniências limitadas ao próprio umbigo. Ao contar com um diagnóstico em
mãos, o capacitista utiliza o fato como se fosse uma justificativa conveniente
para que nós, "autistas velhos", sejamos vistos como algo que
perturba as convicções dos neurotípicos que acha que “autismo é moda”.
Dessa forma, torna-se evidente a
relação da frase supramencionada de Fernando Pessoa com o conteúdo do texto que
acabou de ser lido.
[1]
O termo "meltdowns" refere-se
a episódios em que uma pessoa com autismo de nível 1 de suporte pode
experimentar uma sobrecarga emocional intensa, resultando em reações visíveis,
como choro, agitação ou isolamento. Esses momentos podem ocorrer devido à dificuldade
em lidar com estímulos sensoriais intensos ou situações estressantes, sendo uma
expressão do desafio que alguns indivíduos autistas enfrentam ao regular suas
emoções.
[2]
O termo "masking" ou as “caretas” como alguns costumam rotular ou as
“caras e bocas” refere-se a uma estratégia que algumas pessoas com autismo de
nível 1 de suporte adotam para esconder ou disfarçar suas características
autísticas em situações sociais. Isso pode envolver a imitação de
comportamentos considerados mais "neurotípicos" (comuns na maioria
das pessoas) para se adequar melhor às expectativas sociais, mesmo que isso
exija um esforço significativo. O "masking" pode ser uma forma de
enfrentar as dificuldades na comunicação social, mas também pode impactar
negativamente o bem-estar emocional e o relacionamento com os outros.
[3]
O termo "hiperfoco" refere-se
à habilidade de algumas pessoas com autismo de nível 1 de suporte em concentrar
intensamente sua atenção e energia em assuntos específicos de interesse. Isso
significa que essas pessoas podem se dedicar profundamente a atividades ou
temas específicos, muitas vezes perdendo a noção do tempo enquanto exploram
suas paixões. Embora o hiperfoco possa proporcionar alegria e satisfação, é
importante notar que, em alguns casos, pode levar a desafios na gestão do tempo
e na participação em atividades cotidianas.
[4]
A "rigidez cognitiva" no autismo refere-se a uma tendência em
resistir a mudanças nos padrões de pensamento e comportamento. Em termos
simples, isso significa que pessoas autistas podem encontrar desafios ao lidar
com situações diferentes ou aceitar perspectivas alternativas. Essa rigidez
pode afetar a forma como entendem e respondem ao mundo ao seu redor,
influenciando os relacionamentos e a empatia.
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